Editora: Quadrinhos da Cia
Gênero: Não Ficção
Ano: 2023
Páginas: 168
Nota:★★★★☆
Sinopse: Por que as fotos que vemos rolar pelo feed das redes sociais podem nos levar a sentimentos de ansiedade, raiva, tristeza e frustração? Quando foi que criamos uma relação voyeurística crônica com nós mesmos? Como, afinal, enxergar a si próprio num mundo dominado pela hiperexposição? Depois dos sucessos de A origem do mundo e A rosa mais vermelha desabrocha, Liv Strömquist volta seu olhar para as imagens que brilham, sedutoras, nas telas dos nossos celulares. Do mito bíblico de Jacó à última sessão de fotos de Marilyn Monroe, da obsessão da imperatriz Sissi da Áustria com magreza e exercício físico ao roubo do busto de Nefertiti ― o rosto mais belo que já existiu ―, a artista sueca investiga o cânone que nos escraviza e tenta encontrar o que há de real atrás de filtros e selfies. Com a ajuda de reflexões de Susan Sontag, Naomi Wolf, Simone Weil, Eva Illouz e da madrasta da Branca de Neve, Na sala dos espelhos se pergunta como a inveja e o instinto competitivo alimentam o consumo compulsivo. Um livro raro, engraçado, com opinião e inteligência singulares.
Resenha: Na Sala dos Espelhos é a terceira HQ focada no universo feminista da autora sueca Liv Strömquist publicada pelo selo Quadrinhos da Cia aqui no Brasil. Nesse volume a autora vai abordar a questão da beleza como um produto a ser ofertado em meio a sociedade de consumo do capitalismo tardio, a necessidade de se vender uma padrão de beleza perfeito, e como esse tipo de conteúdo interfere na vida das reles mortais que acompanham, idolatram e almejam a aparência e o glamour de influenciadoras como Kylie Jenner e afins, fazendo com que existam as que vivem de internet criando de forma compulsiva, e as que vivem na internet consumindo esse conteúdo de forma tão compulsiva quanto.
Vamos acompanhando essa "trajetória" da beleza através de aspectos históricos, filosóficos, políticos e sociológicos e o motivo desse almejo de acordo com a própria concepção de realidade daquela pessoa, seja ele por interesse próprio, pelo interesse em se sentir aceito na sociedade, ou até mesmo pela necessidade de se conseguir ou de se manter um relacionamento.
A autora apresenta estudos e várias teorias de filósofos, sociólogos, escritores e outros, como René Girard, Zygmunt Bauman, Eva Illouz, Hartmut Rosa, Simone Weil e Chris Rojek; exemplos reais encontrados na cultura pop através de celebridades e influenciadores como Kylie Jenner, Kim Kardashian e Marylin Monroe; fatos históricos envolvendo figuras da aristocracia como a imperatriz Isabel da Áustria. Ela também mostra como o machismo, o patriarcado e até a religião estão inseridos nesse contexto mencionando eventos históricos, políticos e bíblicos e como essas questões perduram até a atualidade em tempos de redes acessíveis como Instagram, TikTok e sabe-se lá quais outras redes existem por aí. E, principalmente, como essa ilusão de perfeição e glamour interfere na vida das pessoas.
"Tomamos emprestado nosso desejo do outro, em um movimento tão fundamental, tão original, que o confundimos com a vontade de sermos nós mesmos." - Girard- Pág. 18"O essencial é sempre o Outro, um Outro que não importa quem seja, a encarnação de uma totalidade inexpurgável, presente em toda parte e em parte alguma, e que as pessoas insistem em querer seduzir. É o Outro como obstáculo insuperável" - Girard- Pág. 22"A fragilidade dos vínculos humanos é atributo proeminente, talvez definidor da vida líquido-moderna." - Bauman- Pág. 43"Uma série de novas indústrias ajudou a promover e legitimar a sexualização das mulheres e, mais tarde, dos homens. A sexualidade proporcionou ao capitalismo uma oportunidade fantástica de expansão, porque exigia das pessoas uma incessante encenação de si mesmas e oferecia inúmeras opções para criar um clima sexy. - Illouz- Pág. 47"A beleza não contém nenhum fim. A beleza sozinha não é um instrumento para outra coisa. Ela é boa em si, mas não encontramos nela nenhum bem." - Weil- Pág. 119"Uma coisa bela não contém nenhum bem senão ela mesma. Vamos até ela sem saber o que lhe pedir. Ela nos oferece a própria existência. Não desejamos outra coisa, possuímos isso, mas continuamos desejando. Não sabemos o quê. Queremos ver por trás da beleza, mas ela é apenas a superfície. É como um espelho que reflete nosso desejo pelo bem." - Weil- Pág. 123
Assim como nos livros anteriores, a HQ tem ilustrações simples, com textos informativos, bem humorados, irônicos e reflexivos que conseguem transmitir a mensagem que a autora quer passar mesmo que este tenha um tom mais sério (talvez devido a complexidade do tema). O que fica em evidência é a ideia de se viver ilusões, sobre como as pessoas se escravizam e travam verdadeiras batalhas consigo mesmas em nome de um corpo e uma aparência perfeita baseada na aparência de alguém simplesmente inalcançável.
Inicialmente a sensação é que autora quer falar sobre a história da estética e mostrar todos os problemas que dizem respeito a essa busca incessante pelo corpo perfeito, pelo rosto perfeito e pela vida perfeita de influenciadoras que as pessoas encontram nas redes e almejam pra si mesmas a ponto de, em muitos casos, se tornar uma verdadeira obsessão. Isso acaba desencadeando comparações absurdas onde vai aparecer gente que se sinta inferior por não corresponder àquela imagem e tendo problemas seríssimos de autoestima, ou se sentindo pressionada a ser igual a quem acompanha. O livro inclusive lembra do caso em que várias pessoas entraram num desafio descabido de fazerem pressão com a boca num copo pra ficarem com os lábios enormes de tão inchados, porque essa imagem da boca grande e carnuda é a mais bonita, é a mais atrativa, é o que está na moda. A autora não só dá exemplos reais, como também procura na ciência explicações para esses fenômenos comportamentais em que várias pessoas começam a fazer coisas que naturalmente não fariam, se não fossem a influência de outra pessoa.
Ao final, os pontos abordados pela autora e que trazem diversas reflexões sobre essa questão da imagem são um meio de se chegar a mensagem que captei ao ler o livro, que fala da pressão social a que muitas pessoas estão submetidas, das mudanças de padrões que nem sempre são necessárias, da aceitação e autoestima que são os principais fatores submetidos a esses conteúdos, o contraste do que é mostrado nas imagens e o que fica nos bastidores, e principalmente da saúde mental fragilizada por vivermos numa era digital com informações vindas de pessoas que simplesmente definiram o que é beleza e saem por aí impondo e influenciando os outros sem ter a menor ideia das consequências que isso causa. Por mais que determinadas postagens tenham a intenção de mostrar um lado real (ou imperfeito) do que quer que seja, ela não deixa de fazer parte de uma performance consumível que continua alimentando a indústria de anúncios (engordando cada vez mais os bolsos da burguesia) e mantendo as pessoas cada vez mais dependentes de redes sociais e telas em geral.
No mais, acho que o título do livro serviu muito bem, pois ele vai se referir a necessidade que todos deveriam ter de olhar no espelho, em introspecção, pra descobrirmos quem somos na realidade, em vez de olhar e procurar no outro.