Título: Eu Me Possuo
Autora: Stella Florence
Editora: Panda Books
Gênero: Romance/Literatura Nacional
Ano: 2016
Páginas: 184
Nota:
★★★★☆
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Sinopse: É possível abordar com leveza um tema tão duro quanto o estupro sem perder a profundidade? A escritora Stella Florence, que acaba de lançar o romance Eu me possuo, pela Panda Books, garante que sim: “Eu foquei o livro não na violência sexual que a protagonista sofre, mas na superação dela”. Em Eu me possuo acompanhamos a saga de Karina, uma mulher tímida, que decide abandonar a odontologia e abrir um bar. A partir daí, sua vida passa por várias revoluções: profissional, sexual, psicológica, afetiva, familiar. Nessa nova fase, de muito trabalho e muitos homens, Karina reencontra um antigo amor que a estuprou seis anos antes. A tensão que se estabelece entre ambos gera abalos e confrontos. Uma pessoa especialíssima, porém, acompanha Karina todo o tempo: sua moderna e sábia avó, Evelyn.
Resenha: Karina é uma jovem de vinte e poucos anos que mora com os pais e a irmã, Mariana. Ela é estudante de Odontologia e faz estágio em uma clínica. A vida de K é, aparentemente, normal, e a ideia de ajudar Renata, uma antiga amiga, em seu bar, o Quintal da Vizinha, seria uma forma de fugir da rotina, da família apática e da mãe cheia de manias estranhas e inexplicáveis. Sua única fortaleza é Evelyn, sua avó materna.
O que ela não esperava era que, ao mudar sua vida para se dedicar a algo que poderia lhe trazer alguma realização, ela iria se deparar mais uma vez com Gustavo, o cara que a violentou quando ela tinha dezessete anos... Como Karina vai lidar com isso? Por que Gustavo reapareceu? Será que é chegada a hora de Karina enfrentar seus fantasmas confrontando esse homem de uma vez por todas?
O livro é narrado em terceira pessoa e, embora possua um tema delicado a ser tratado, é bastante leve e fluído, sendo possível ler em questão de algumas horas. Apesar de ter sido algo que marcou Karina de forma negativa, a história segue por um outro caminho. O estrupro do qual K foi vítima acaba não sendo o foco principal do enredo, mas sim como ela lidou com isso, como conseguiu vencer essa barreira e retrata a nova e incrível mulher que ela se tornou após ter superado o ocorrido.
Karina é uma mulher tímida, mas que não tem medo de se arriscar, independente do assunto se referir ao seu lado pessoal ou profissional. Ela experimenta coisas novas, não se apega facilmente a alguém e não deixa de aproveitar a vida como quer, abre mão do que não a faz feliz sem pestanejar, mostra que tem o pé no chão, que sua opinião é sólida e bem fundamentada e seu caráter é admirável. E não se trata apenas de sua vida sendo transformada a partir das escolhas que ela toma, mas também uma visão nova e melhor que ela passa a ter sobre amizade, amor, família, trabalho e, acima de tudo, sobre si mesma.
"...ela determinou que nunca mais o sexo seria algo preso ao corpo, que nunca mais ela sentiria vergonha, que ela sempre transbordaria de sua pele, de seus contornos, e que todos os homens que a tocassem sentiriam o quanto é estupidamente excitante estar com uma mulher que se sente livre."
- Pág. 63
Sua avó, também tem grande importância em sua vida, pois diferente de sua mãe e de seu pai, é ela quem apoia a neta com palavras de conforto e sempre está alí para o que der e vier. Ela é uma senhora com o espírito jovem, mas cheia de sabedoria e experiência de vida, e se não fosse por sua ajuda, talvez Karina poderia ter sucumbido à própria angústia. Acredito que Evelyn é a personificação do que alguém que sofreu algum trauma mais precise. Alguém que esteja alí pra apoiar, pra acolher e ajudar, alguém essencial na vida de qualquer um. Ninguém supera nada sozinho, todo mundo precisa de alguma ajuda, de algum incentivo para poder enxergar que a vida não acabou e poder seguir em frente de cabeça erguida. E é isso que K faz.
Alguns personagens aparecem sem uma devida apresentação e por alguns momentos tive um pouco de dificuldade de saber quem era, de onde vieram ou o que faziam até que fosse melhor explicado. Os capítulos são curtos e isso acaba causando uma ansiedade maior sobre o que virá a seguir, porém, não há uma ordem cronológica certa e um capítulo não dá uma sequência linear para o anterior, o que pode acabar tornando os fatos um pouco confusos, fragmentados, como se algumas partes estivessem faltando.
Obviamente um estupro não é algo fácil de se lidar mas, por mais que Karina tenha tentado encontrar justificativas e se culpado pelo que aconteceu, ela, enfim, conseguiu se libertar daquela prisão em que ela mesma se colocou. A forma como ela decide enfrentar seus medos, seguir em frente e se impor como uma mulher forte e corajosa é uma postura libertadora e que tem tudo a ver com empoderamento feminino, tema muito importante na atualidade.
"E quem forjou a chave para abrir meu cativeiro fui eu. A força que hoje me habita é criação minha. Eu me possuo. Ninguém mais."
- Pág. 165
Não temos somente o ponto de vista de Karina sobre o ocorrido, mas também a tentativa falha de Gustavo de se explicar. É como se a autora quisesse mostrar que, muitas vezes, os homens não entendem o que é, de fato, um estupro e, ao cometerem essa atrocidade, ainda continuam com a consciência limpa como se nada demais tivesse acontecido. E através de um email que Karina escreve para ele, sobre tudo o que passou e sobre tudo que aprendeu desde então, fica claro que o que eles podem considerar como uma brincadeira, ou o que não é nada demais, é uma invasão, e pode ser caracterizado como estupro, sim. Não é porque uma mulher gosta e tem atração por um homem que ela quer transar com ele. Um homem não tem o direito de se aproveitar da vulnerabilidade de uma mulher, independente do estado em que ela se encontre. E o mais importante: não são somente desconhecidos que atacam alguém na rua que são estupradores... Qualquer homem, seja ele o pai, o marido, o amigo ou quem quer que seja, pode ser um estuprador em potencial, basta que ele ignore que há uma diferença enorme entre o sim e o não, ou se aproveite da fragilidade, da incapacidade ou do momento em que decide forçar alguém a fazer algo que não se quer... E quem acha isso normal também não fica atrás...
O trabalho gráfico da obra é uma graça. A capa tem tudo a ver com a história, é fosca e tem um tom de turquesa lindo e texturizado, e os detalhes dos ornamentos, das flores e do título possuem uma camada de verniz que deixam tudo muito caprichado. Os capítulos são curtinhos, numerados com ornamento florais e possuem a silhueta do passarinho da capa ao final de cada um deles, a fonte possui um tamanho agradável, assim como as margens que deixam o texto bem distribuído nas páginas (que são amarelas), e a revisão está impecável.
Em suma, é um livro muito bom para trazer reflexões sobre o tema, conscientizando leitores de que a culpa nunca é da vítima e que é possível vencer traumas desde que a pessoa se permita erguer a cabeça e seguir em frente.